quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Fugas


Carta a A,

Já me tinha esquecido da forma como sempre me sinto bem contigo, mais leve, mais espontânea, mais livre para ser eu mesma, sem que por isso seja permanentemente julgada e sumariamente condenada. Sei que és talvez a única pessoa que melhor me conhece, mesmo aquelas minhas facetas das quais nem, contigo falo parecem pesar sobre mim. Contigo o dia termina sempre bem. Rejuvenesço e esqueço tudo e todos que me afligem e destroiem. Posso apenas ser quem sou pois estou segura de ser aceite e do prazer mútuo que temos em estar, em todos os mais pequenos e insignificantes gestos, os quais são afinal a vida real.
As nossas fugas sempre foram feitas em conjunto ou com uma grande cumplicidade. Entre nós não se disputa liderança nem existem desejos obscuros e preversos de dominação ou manipulação, e quando a vida nos magoa, sei que o teu ombro é garantido como mais nenhum e sei também que o meu estará sempre disponível quando precisares.
De todas as nossas “fugas” conjuntas eu mantenho memórias inesquecíveis.
Não sei bem porque razão, mas uma em particular delicia-me com frequência. Não me lembro do nome do local, mas vejo-nos com a maior clareza e detalhe, transportando-me como se lá estivesse. Não sei se te recordas como eu, mas provavelmente lembrar-te-às igualmente bem.
Foi numa tarde de principio de outono que passeamos ao longo de um lago nos arredores de Bruxelas. Era uma tarde soalheira mas fresca, o lago azul e calmo com pequenos barcos coloridos, ledeado por extensos relvados verdejantes e pequenas árvores frondosas, entre as quais serpenteava um longo passeio que percorremos languidamente. Nessa tarde combinamos que a nossa velhice seria um dia passada em conjunto num cenário semelhante (sempre fomos duas miúdas), ao qual adicionaríamos umas mantas quentes e um baloiço de jardim.
Tu tratarias do jardim e remarias o barco, enquanto eu me baloiçaria lendo um livro, ou vociferaria disparates incessantes da proa do barco. Claro que tu mandarias e eu seguiria, continuando eternamente fazendo as minhas habituais asneiras. Os filhos visitar-nos-iam, e os maridos...bom, penso que nos esquecemos momentaneamente deles! Seriamos viúvas ou estariam os seus papéis tão obsoletos que nem da sua existência nos lembrariamos?
Por final acertamos que teriamos um empregado que nos fizesse mordomias, ficando a última a morrer, responsável pela cremação da primeira a “abandonar o barco”.
Ainda hoje fecho os olhos, ouvindo e vendo a nossa conversa dessa tarde. Já lá vão nove anos, penso eu.


MP

1 comentário:

Anónimo disse...

Cara colega Madalena;
Obrigado pelo comentário. Gostei de ver e de passear pelos teus blogues. Parabéns!

BOAS FESTAS!

ângelo Rodrigues